tobor e o amanhecer antecipado em seu dia.

vida simples, pensamento elevado.

quinta-feira, dezembro 22

Patríca Pacífica

- Mãe.
- Patrícia?
- (suspiro de filha única) Sim, mãe.
- Oi minha filha. Você me ligando?
- Saudade, mãe. Muita saudade.
- Onde você tá?
- Muito longe. Num dá pra explicar.
- Então porque me ligou? Num sabe que estou chateada?
- Eu sei, mãe. Me escuta...
- Seu pai e eu já conversamos sobre isso tudo.
- Me escuta...
- Nada que você for falar agora vai mudar nossa opinião.
- Me escuta, mãe!
- E não me venha com "quero dinheiro", "preciso de perdão" ou "dai-me um ombro"!
- Porra mãe! Eu matei um cara!
- Como é?
- Matei um cara...
- Mas...
- Ele não me fez feliz.
- Filha?
- Disse que queria fazer uma coisa terrível...
- O quê?
- Conhecer vocês.

- Mãe.
- Alô?
- Mãe.
- Alô? Ainda tem gente na linha?
- Mãe, é a Patrícia!
- Gente... eu perguntei se tem gente na linha. Num foi qualquer merda não.

- Alô?
- Quem fala?
- Pai, é a Patrícia.
- Oi minha filha.
- Pai, a mamãe tá puta comigo.
- Eu também, minha filha.
- Desculpa, pai.
- Porque?
- Porque eu matei um cara.
- Ué. Pede desculpa pra ele, a gente é que num tem nada haver.

- Alô?
- Quem fala?
- É a Patrícia. Quem fala?
- É o Genário. Com quem quer falar?
- Ué, com meus pais. Chama minha mãe.
- Desculpe, minha filha... é engano.
- Pai?

- Após o sinal deixe seu recado... piiii.
- Mãe? Aqui é a Patrícia. Já fazem alguns meses e vocês não entraram em contato comigo. Estou voltando. Na verdade, estou gravando essa mensagem bem em frente da secretária eletrônica, ouvindo minha própria voz. Acho que vocês foram ao bingo. Bem, peguei minhas coisas e agora estou deixando a família. Reparei nas fotos no criado-mudo com meu rosto recortado. Muito bonito. Bem, a secretária vai contando recados e eu falando besteira. Deixei um vinho no sofá. Não tá envenenado, podem beber. Peguei as reservas do papai, quer dizer, do Seu Ronaldo, é... roubei mesmo. Se quiser, me denunciem. Bem, fico por aqui. A polícia tá atrás de mim. Beijos, quer dizer, um aceno de longe. (suspiro)

- Mãe?
- Órfã?
- Droga.

quinta-feira, dezembro 15

O velho, o menino e coca-cola.

Teodoro tinha seus 72 anos. Andava bem. Vivia bem. Era de uma geração que não viveu muitas emoções. Na época das danças, já se achava velho demais. Nas de revolta, muito acomodado. Nas de liberdade, muito crítico. Enfim, ele vivia uma década a frente da sua, sempre com as idéias erradas e nunca entendendo muita coisa.

Matias tinha dois anos quando perdeu os pais. Passou a morar com um mendigo na sua rua. Era da periferia. O mendigo não lhe ensinava muita coisa, ele mesmo teve que aprender. Com seis, fugiu num ônibus. Foi pro centro da cidade. Lá, ele vivia do pouco que tinha.

Teodoro encontra Matias. Matias limpa seu sapato preto, que na verdade, tinha sido comprado pra dança de salão. Teodoro não entende a situação de Matias e o menino não compreende a carência do velho. Eles vivem um dia no centro. Acabam vivendo outros dez na mesma casa. O velho morre de tuberculose. O menino enterra ele no quintal de casa. No túmulo, o menino coloca o que mais amou no velho: uma garrafa vazia de coca-cola, três broches do Galos Sorridentes e um livro (o qual não lia muito bem) do J.D. Salinger.

Casal

- Onde você tava?
- Vim da livraria.
- Encontrou algo legal?
- Humrum.
- Comprou algum... que é isso na sacola?
- Comprei. Comprei Primo Levi.
- É legal?
- Ainda num li.
- Eu acho interessantíssimo nome de autor. Primo Levi, Lya Luft e Deepak Chopra. Acho que eles devem utilizar de algum tipo de numerologia. Não acha?
- Num sei. Tem alguns casos patéticos como Paulo Coelho e qualquer autor de Auto-Ajuda.
- É. Talvez seja.
- Vi um livro que era sua cara.
- Qual?
- As viagens de Théo.
- (risos) Adorei. É bem minha cara mesmo.
- E então? Vamos tomar um café?
- Montmartre?
- Montmartre.

- Eu tava pensando sobre as coisas existirem mesmo quando estamos de olhos fechados.
- Hum.
- Eu num sei. Quando fechamos os olhos ainda podemos sentir as coisas, então elas ainda estão lá.
- Mas será que não sentimos, exatamente por ter visto antes?
- Ahm?
- Só problematizando.
- Não, não. Os cegos. Nunca viram nada, mas sentem tudo.
- É verdade.
- Eu às vezes fecho meu olho bem rápido e abro em seguida pra sentir se as coisas mudam um pouco de lugar. E uma vez aconteceu.
- O quê?
- Um jarro. Ele era violeta. Uma cor forte e inconfundível. Mas quando abri os olhos ele estava azulado, quase cor do céu. Na hora, ainda fechei novamente os olhos. Mas nada mudou.
- Que estranho. Você tem esse jarro ainda.
- Claro! O jarro que fica na sala, próximo do som. Lembra?
- Sim claro. Mas ele sempre foi azul.
- Não. Nem sempre.
- Então tenta mudar minha cor.
- Ahm?
- Quero ser azul.
- Você?
- Humrum.
- (risos) Você não pode ser azul.
- Porque não?
- Ora. Num sei. Num pode.
- Me transforma. Seja criança.
- Ahm?
- ...
- Certo.
- ...
- ...
(momento sagrado)
- Tou de que cor?
- Vermelho. (risos)
- (risos) Eu quero azul!
- Desculpa. É que pisquei errado. Agora vai.
- ...
- Pronto. Azulzinha.
- Minha nossa. Vou me ver no espelho.
- Vá.

- Hoje, lá no Montmartre, percebi uma coisa.
- O quê?
- Na verdade, você falou.
- O que foi?
- Seja criança.
- (risos)
- Como temos um horizonte limitado. A gente cresce e vai se limitando a um modelinho de adulto perfeito.
- E violeta.

quinta-feira, dezembro 1

Entendendo os buracos

- Vi o Plácido hoje andando apressado no centro.
- Foi?
- Humrum.
- E?
- Ele tropessou e caiu.
- Sério?
- Não. Mas se eu não colocasse algo interessante nessa história, essa afirmação seria apenas uma demonstração do meu ciúme pelo Plácido.


- Sua tia num jogou no número 18?
- Foi.
- E saiu o quê?
- 13.
- E se a gente apagar as pontinhas pra abrir o oito e virar um três?
- O pessoal da lotérica num é tão burro quanto você.
- Ahm?


- Ai o menino veio correndo. Ai ele olhou pra mim. Ai puxou a arma e olhou pra mim. Ai puxou a arma e apontou pra mim a arma. Ai ele me olhou com os olhos mais cálidos e ternos que possam existir nesse mundo, foi paixão, foi amor, fui conquistada pela raiz. Daqueles olhinhos lindos saiu uma lágrima e do meu peito um rastro de sangue. Fui.


- Tava vendo o jornal hoje. Você sabia que você tem cura?
- Tu quer curar o quê, Geraldo?
- Essa cara de merda de você tem!
- Tudo bem, Geraldo.
- Escutei no rádio que agora tão aceitando doação de órgãos de pessoas vivas.
- O que você quer dizer com isso, Geraldo?
- Tá na hora de você doar seus olhos, sua boca e esses peitos caídos pra alguma vaca!
- Tudo bem, Geraldo.
- Puta que pariu!!! Queria que tu morresse, velha chata!
- Não antes de você, Geraldo. O doutor disse que só mais dois dias e você tá fora. Tudo bem, Geraldo? Geraldo?


- Você tá esperando o via São Fernandez?
- Não. Vou pra Ireré.
- Ireré? Mas Ireré fica em outra cidade!
- É. Eu sei.
- Você vai viajar mais de trezentos quilomêtros.
- Humrum.
- O que você faz em Ireré?
- Dirijo o ônibus de volta pra cá.


- Não acorda agora. Espera.
- ...
- Tá sentindo minha mão?
- (movimento positivo com a cabeça)
- Ótimo. Onde estou segurando?
- Nos meus seios.
- Ótimo. Sente a minha liberdade.
- Pernas.
- ...
- Joelho.
- ...
- Bunda.
- ...
- Cabeça e Bunda?
- Gustavinho!!! Eu num mandei você ir dormir??? Volte já pra sua cama! Deixe eu e sua mãe em paz, menino!
- ...
- ...
- Amanhã a gente tenta.
- Amanhã tou com dor de cabeça.