tobor e o amanhecer antecipado em seu dia.

vida simples, pensamento elevado.

quinta-feira, agosto 11

Confissões - Brilho nos Olhos


"E lá se foi aquela alma, mesmo que pequena, infeliz."

Brilho nos Olhos

Sempre quis fazer uma prece pelas almas das pessoas mortas. Mas não aprendi a rezar. Não sei nem falar tudo aquilo. Acho que as almas não vão por acaso. São escolhidas pelo dedo de Deus. Na verdade, já vi muita gente morrendo perto de mim, mas não tinha culpa em nenhuma dessas mortes. Dessas não. Comigo só tem boato. Nada de fato. Mas acho que aquela frase é verdadeira: "Os olhos são a janela da alma". Os olhos são mais do que isso. O problema é quando se fica cego de raiva. Quando não se vê um coração aceso dentro de você, mas sim o próprio inferno pegando fogo nas suas entranhas. Quando cada veia do seu cérebro se torna um verme que lhe impulsiona a um frenesi descontrolável. O problema é esse. O meu problema é esse.

Eu já observava os passos daquela menina já fazia tempo. Ia da escola pra casa, da casa pra escola. Nos finais de semana era igreja. Vida normal. Eu não a seguia, era pura coincidência. Uns meses depois, voltei do interior e de um dia pra outro ela mudou. Ela andava gorda. Achei que fosse a época de grandes festas na cidade. Mas naquele dia ela tava tão magrinha. Puxei uns dois cigarros. Comecei a observar que ela olhava constantemente para trás. Coisa de quem fez merda. Desculpe o termo, padre. Eu sou uma pessoa que respeita os outros, até eu ver que tá tudo bem. E não tava tudo bem. Certa noite, coincidentemente, tava passando pela casa dela. Ela saiu pela janela e correu por umas duas ruas abaixo. Puxei dois cigarros e corri atrás dela. Ela entrou num terreno abandonado cheio de entulho e lixo. O lugar fedia de fora. Sai logo. Deixei ela procurar o que tava procurando. Em menos de minutos ela saiu correndo de volta. Não me viu. Dei meia volta e entrei no terreno. Parece que a lua é minha amiga, padre. Não tive como não olhar pra outro canto. Na ponta do terreno, uma área era iluminada pela lua. Eu vi um corpo estirado. De longe parecia. um corpo. Mas um feto num chega nem a ser um corpo. Tava lá, todo estraçalhado. A cabeça meio aberta. Lembra do inferno quando a pessoa fica cega? Eu era o próprio demônio em fúria. O sangue me subiu. Nunca queira me ver assim, padre. Nunca. Corri pra pegar aquela filha da puta ainda na rua. Desculpe o termo. Corri feito um louco. Acho que corri tão rápido que ela nem sentiu eu chegando perto dela. Puxei ela pelo cabelo e joguei a desgraçada pra trás. Meti tanto soco na cara que parecia uma carne de frigorífico, toda exposta. Mas pra mim num era suficiente. Ninguém mata um feto e sai por aí se arrependendo. Puxei ela até o terreno. Ainda tava vivinha, chorando, sem conseguir falar. Ela num queria por o menino pra fora? Fiz ela botar pra dentro. Comeu cada pedacinho. E a cada engolida eu metia porrada nela. Filha da puta. Você me desculpe o termo. Ela não suportou o taco de madeira que eu achei no chão e morreu ali mesmo. Dei uma lição, seu padre. Mas na pessoa errada. Descobriram a mãe do menino. Vi no jornal que o lugar era onde o pessoal do bairro jogava o lixo. Ela tava atrás do diário que a mãe jogou fora, seu padre. Uma merda de um diário. Dei a lição, seu padre. Mas na filha da puta errada. Desculpe o termo, seu padre. Sou um dedo de Deus.

segunda-feira, agosto 8

Confissões - Nega Maluca


"Ele quase num tinha parte branca. Só escapava os olhos, as unhas grandes e os dentes, que ainda era meio amarelo. Malditos dentes."

Começando de hoje, estarei escrevendo uma série de textos relatados por um padre cego. Os textos foram criados em épocas diferentes e às vezes em cidades, por consequência em culturas, diferentes. O padre Vincente, cego de nascência, nunca pode determinar a gravidades das coisas que ouvia, mas sabia da importância delas. Eis um retrato humano.

Nega Maluca

Eu sempre amei muito minha família. Sempre fiz de tudo para que tudo estivesse nos conformes. Sigo a palavra de Deus, seu padre. Até demais. Minha família é tudo para mim. Sou mãe de dois filhos. Um finado e outro cego. Cego de cor. Ele não consegue diferenciar os negros dos brancos. Os demônios dos anjos. É uma maldição. Um tentação do senhor da casa debaixo. O menino fez uma viagem há cinco meses para a capital e me voltou com novidades. Ele me disse que ia para conhecer o mar grande que tem por lá. Me chegou com um sorriso grande e veio logo me falando que tinha conhecido alguém. Tudo bem. Então ele me mostrou uma fotografia da menina. Me desculpe, seu padre, mas estou ficando de cabeça quente só de contar. A desgraçada da menina é negra. Preta azulada. É um preto que dói nos olhos, no coração. Um preto que imagino que acabe num rabo afiado. Num riso de enxofre. Nas patas por trás daqueles pés. Ela me trouxe uma flor de presente, lá da capital. Não durou uma tarde. Ela chegou pra acabar comigo. Já veio grávida.

Dois anos mais e eu não sei o que se passa na cabeça do menino. É a última vez que venho. A mulher do meu filho teve um filho que nasceu negro, cresceu negro e agora respira negro. O menino é até bonitinho, para um negro. Adoro fazer bolos, seu padre. Faço bolo de tudo que é sabor. Já fiz até de alecrim. Mas preciso confessar que me tornei cega. Cega de fé. Na minha casa costuma dar rato. Tenho muito veneno em casa. Fiz um bolo prum rato negro, seu padre. E ele comeu todinho na minha frente. O mais ruim foi que eu não consegui parar no riso. O menino ria também. Agora ninguém ri mais.