tobor e o amanhecer antecipado em seu dia.

vida simples, pensamento elevado.

segunda-feira, agosto 8

Confissões - Nega Maluca


"Ele quase num tinha parte branca. Só escapava os olhos, as unhas grandes e os dentes, que ainda era meio amarelo. Malditos dentes."

Começando de hoje, estarei escrevendo uma série de textos relatados por um padre cego. Os textos foram criados em épocas diferentes e às vezes em cidades, por consequência em culturas, diferentes. O padre Vincente, cego de nascência, nunca pode determinar a gravidades das coisas que ouvia, mas sabia da importância delas. Eis um retrato humano.

Nega Maluca

Eu sempre amei muito minha família. Sempre fiz de tudo para que tudo estivesse nos conformes. Sigo a palavra de Deus, seu padre. Até demais. Minha família é tudo para mim. Sou mãe de dois filhos. Um finado e outro cego. Cego de cor. Ele não consegue diferenciar os negros dos brancos. Os demônios dos anjos. É uma maldição. Um tentação do senhor da casa debaixo. O menino fez uma viagem há cinco meses para a capital e me voltou com novidades. Ele me disse que ia para conhecer o mar grande que tem por lá. Me chegou com um sorriso grande e veio logo me falando que tinha conhecido alguém. Tudo bem. Então ele me mostrou uma fotografia da menina. Me desculpe, seu padre, mas estou ficando de cabeça quente só de contar. A desgraçada da menina é negra. Preta azulada. É um preto que dói nos olhos, no coração. Um preto que imagino que acabe num rabo afiado. Num riso de enxofre. Nas patas por trás daqueles pés. Ela me trouxe uma flor de presente, lá da capital. Não durou uma tarde. Ela chegou pra acabar comigo. Já veio grávida.

Dois anos mais e eu não sei o que se passa na cabeça do menino. É a última vez que venho. A mulher do meu filho teve um filho que nasceu negro, cresceu negro e agora respira negro. O menino é até bonitinho, para um negro. Adoro fazer bolos, seu padre. Faço bolo de tudo que é sabor. Já fiz até de alecrim. Mas preciso confessar que me tornei cega. Cega de fé. Na minha casa costuma dar rato. Tenho muito veneno em casa. Fiz um bolo prum rato negro, seu padre. E ele comeu todinho na minha frente. O mais ruim foi que eu não consegui parar no riso. O menino ria também. Agora ninguém ri mais.