Radicalismo
Quase tudo que me acontece é inversamente proporcional a sua necessidade. De um simples tropeço ao mais agravante de todos os tombos. Da mais terrível alergia ao mais singelo dos espirros. Sou a contradição em pessoa. Desculpe, permita me apresentar. Sou Charles e sou filho de duas pessoas do mesmo sexo. Não os considero meus pais, nem mesmo parentes. Eles não me aceitam e eu num aceito eles. Por isso nasci órfão e meus filhos, se um dia eu os tiver, serão órfãos também. Porque? Porque é uma delícia! Tipo torta de morango. Mas deixe-me continuar. Tenho 39 anos de idade e desses, 15 passei atrás de um piano num bar da rua Quinze de Agosto. Nem imagino o que aconteceu nesse dia para ganhar nome de rua, mas enfim era lá. Neinn Bar. Neinn era o alemão que mandava em mim e mais quatro garçonetes, um cozinheiro filho da puta e um caixa que lhe roubava trinta dólares todos os dias para comprar ópio. Eu adorava isso. Tocava todos as noites e para todo tipo de gente. Mas comigo não tem essa não, toco o que quero. Quem quiser ouvir, que ouça. Neinn era contra meu radicalismo, mas artistas têm disso. Das segundas às quintas eu tocava a mesma listinha de canções do século passado mixadas com um pouco do Thelonius Monk. Adoro blues. Aliás, amo Monk. Um dia toquei Ray Charles e levei uma ovada. Dizem que só se toca Ray Charles bem de olhos fechados. Sou radical, toco piscando os olhos intensamente. Mas que inferno.
Sou Charles e moro aqui. Você acha engraçado eu ter um gato que não sai da caixa de areia, mas eu não acho. Eu tenho um peixe que não nada, pois ele também é radical. Leio romances que me façam chorar. Gosto da Justine. Me refiro ao livro, claro. Pois a Justine que trabalha no Neinn é mais feia que o cu do meu gato cheio de areia. Ai ai, como sou engraçado. Estou apaixonado. Pois é. Um dia tinha que acontecer. Ela se chama Graça, mas eu chamo ela de Gracinha. Ela é uma gracinha, óbvio. Mora cinco quarteirões da minha casa, 753 passos da minha porta. 751 se eu não tropessar na escadinha. Ela gosta de café amargo e eu também. Isso, pra mim que sou radical, se chama amor. E eu estou apaixonado. Vamos nos casar no dia quinze de agosto. Ela ainda num sabe, é supresa. Escolhi a data porque deve ser um dia importante e também porque só falta sete dias pro dia quinze de agosto. Comprei um bolinho lindo de chocolate e vou lá na casa dela propor uma macarronada. Ela adora macarronada. Conheci ela na macarronada do Arnaldo. Arnaldo é gay. Eu não. Eu, rá, eu sou radical!
Prazer, Charles.