Daquela Mala e a Coca-Cola
Lanço suave, uma tampa daquela garrafa, que pousa como um pássaro no lago raso dos teus lábios.
Daquela Mala
Era uma segunda e tinha escrito em letras pequenas e corpo 13, "Solitude d'Cavan Hades - RB - 98392". Na manhã de antes, estava a carne toda amassada a socos, na beira de uma janela, sendo contemplada e deliciada pelas moscas da vizinhança. Era de vaca. Mas hoje não é ontem, devemos falar do momento. Estava num placa metálica e tinha código de abertura. Era uma bela de uma valise. Estava ali, a cerca de 13 centímetros da faixa amarela limitadora. Um assovio ao longe. Tava chegando o trem. Alguém esquece a valise na estação. Era marrom, não sei se pintam o couro, mas nunca vi marrom em boi daquele jeito. Eu tinha tomado uma coca-cola minutos antes. Não sei se era inverno no norte ou verão no sul, mas fazia um frio danado na minha barriga. Aquela coca-cola congelou tudo que estava dentro de mim. Só deixou meu coração batendo pra continuar tendo seu consumidor. "Não queremos a queda de usuários", declara Van Stiller Baudhein, supremo-assessor pra assuntos gerais, para uma revista comercial, naquela mesma época. Peguei a mala, nem contestei. Mala? Valise! A pessoa devia ser rica, afinal tinha assinatura da d'Cavan Hades. Era uma Solitude. Comprada em 92. Mas quem era RB? Ronaldo Bittencourt? Rogério Bertollini? Era rico. Era Rico. Ricardo Barreto. Quis acreditar assim. Ele era um esquecido mesmo. Lembro quando deixou a mulher numa loja de langeries e levou a roupa dela pra casa, achando que voltava da lanvanderia. Foi um escandâlo. Mas veja as vantagens do esquecimento: perceba a felicidade do peixe, que bate com a cara no aquário e um minuto depois esquece que vive numa caixa de vidro. Morre por isso? Alguns sim, outros não. Já tive peixes suicidas. Mas aquela maldita valise estava no meu colo, indo de São Pedro Garacela para Praça da Pedra. Tem gente que chama de mala, eu chamo de valise. Daquela mala, nada se sabia. Eu num sabia abrir ela e o dono talvez nem se lembrasse da cor dela, que era o tal marrom transgênico. Três semanas se passaram, e todos os santos dias, enquanto esperava o trem, pousava a mala no mesmo canto que encontrei, esperando um bendito de um funcionário da VincentLoud, empresa de Rico, vir procurar por ela. Nada. Um velho ainda veio me perguntar um dia onde tinha comprado. Era daqueles safados. Mas sabia que encontraria Ricardo Barreto, o homem que nunca existiu, que esqueceu a valise que nunca existiu, na estação de trem que nunca foi construída. Tudo isso porque preciso de algo pra acordar de manhã, preciso de algo pra poder levantar depois da queda, preciso de algo pra pensar enquanto tomo um café no intervalo do trabalho. Preciso dessa valise.
Em busca do meu jardim, que já existe, que sabe que eu existo, mas ainda não viu seu jardineiro. Vou cercar com uma cerquinha marrom, desses que boi nenhum possui.
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